No atendimento neuropsicológico de pacientes com doença de Alzheimer (DA) é frequente o familiar relatar que seu ente querido está esquecendo o nome de amigos, tem dificuldade para encontrar a palavra certa durante o discurso ou perde o fio de uma história ao ler o jornal ou iniciar uma tarefa sem os materiais necessários. Isso ocorre pois a DA é o tipo mais prevalente de demência, que é uma síndrome associada às condições neuropatológicas que causam declínio cognitivo importante, a partir de nível anterior de desempenho. A alteração cognitiva pode ocorrer em um ou mais domínios cognitivos, sendo eles: atenção complexa, função executiva, aprendizagem e memória, linguagem, perceptomotor ou cognição social e levar à perda da independência funcional.
A projeção de casos diagnosticados até o ano de 2050 será de 16 milhões. Ainda não há cura para a doença, mas é particularmente importante retardar o declínio cognitivo e funcional, visto que evitar uma queda de 2 pontos no teste de rastreio MMSE (Mini Exame do Estado Mental) pode poupar uma família de gastar milhares de dólares anualmente, além de manter a funcionalidade por um período maior de tempo, atrasando a necessidade de cuidados mais intensos e institucionalização.
Os medicamentos como os inibidores da colinesterase e a memantina fornecem benefícios limitados, mas há evidências que sugerem que os métodos farmacológicos, associados aos não-farmacológicos, como a reabilitação cognitiva (RC), podem maximizar os benefícios funcionais para pacientes com demência, além de ter uma boa custo-efetividade tendo a qualidade de vida como medida de desfecho.
A RC é o processo de reaprender habilidades cognitivas que foram perdidas devido à alteração cerebral. Se essas habilidades não puderem ser reaprendidas, outras capacidades serão usadas para compensar as funções cognitivas alteradas.
Na demência por doença de Alzheimer, compensar as funções cognitivas para minimizar o impacto funcional é o objetivo. Isso é possível pois, em seu estágio inicial, algumas funções, como a memória implícita, estão preservadas e podem ser alvo de intervenção. Logo, métodos compensatórios são utilizados para promover maior autonomia e qualidade de vida pelo maior período de tempo, aprimorando as habilidades dos pacientes para compensar a alteração do funcionamento cognitivo. Os benefícios da RC permanecem até um ano após seu término.
Princípios de plasticidade cerebral na reabilitação cognitiva
O envelhecimento traz alterações estruturais e funcionais, incluindo o funcionamento neuromodulatório. Entretanto, descobriu-se que o sistema nervoso tem a capacidade de ajustar sua organização estrutural em resposta ao meio ambiente, ou seja, o cérebro tem a capacidade de se reestruturar para se adaptar às circunstâncias em mudança decorrentes de novos estressores.
Clare e colaboradores (2010) num estudo controlado randomizado, simples-cego, consistindo de RC versus sem tratamento nos pacientes com DA leve, encontraram um aumento nos sinais dependentes de oxigênio no sangue no grupo submetido a RC em áreas que fazem parte da rede para codificação associativa visual e aprendizagem (área fusiforme direita, córtex para-hipocampal direito, junção do córtex parieto-temporal direito, córtex pré-frontal medial direito). Os indivíduos na condição controle mostraram atividade reduzida. Assim, evidencia-se que que o sistema nervoso central pode alterar dinamicamente sua estrutura, graças à sua plasticidade neural, mesmo em pessoas idosas com DA.
Estratégias cognitivas utilizadas na reabilitação cognitiva
Ao planejar o cuidado do paciente em reabilitação cognitiva é fundamental avaliar os pontos fortes e fracos da cognição, a partir da avaliação neuropsicológica. Depois dessa avaliação, o profissional determinará as queixas cognitivas que afetam as tarefas e rotinas diárias do paciente e verificará como ele as gerencia. Além disso, identificará as áreas em que o paciente está mais preparado e motivado para alcançar mudança, o que ajuda a estabelecer metas pessoalmente significativas.
Em certas situações, pode ser apropriado e desejável incluir membros da família ou cuidador ?para permitir que sejam identificadas metas realistas. Por exemplo, para uma pessoa com demência lembrar dos nomes de todas as pessoas que conhece pode simplesmente não ser alcançável. Se lembrar os nomes é crucial para o paciente, um conjunto limitado de nomes precisará ser especificado. Definido o objetivo, na sequência o reabilitador recrutará as melhores estratégias cognitivas para alcançá-lo.
Como relatado anteriormente, pacientes com DA apresentam intacta a memória implícita, logo estratégias cognitivas que a envolvam serão fundamentais para o sucesso da RC.
São muitas as estratégias cognitivas, sendo as mais utilizadas a aprendizagem sem erros, a recuperação espaçada e o desaparecimento de pistas.
Aprendizagem sem erros
A aprendizagem sem erros é um procedimento projetado para ensinar habilidades que reduz ou elimina erros de aprendizado ou o emparelhamento incorreto de informações.
Evitando os erros de aprendizagem, fortes conexões associativas são formadas para sequências de habilidades corretas. Inicialmente, o treinamento é altamente estruturado e muitas dicas e sugestões são fornecidas para incentivar o aprendizado bem-sucedido e a recordação de informações de treinamento. Com o tempo, à medida que essas associações se fortalecem, as sugestões ambientais podem ser removidas. Por exemplo, ao ensinar uma pessoa os passos de fazer ovos mexidos, o ambiente de treinamento pode inicialmente ser montado de modo a estimular cada um dos passos e como essas sequências de ações se tornam mais automáticas e implícitas, as sugestões ambientais podem ser removidas lentamente.
Desaparecimento de pistas
O desaparecimento de pistas é uma técnica de redução sistemática de informações. Quando o paciente com DA está aprendendo alguma informação, começa-se com a quantidade de pistas para que a pessoa tenha sucesso na evocação da informação e, então, lentamente diminuem-se as sugestões. Ao final da tarefa o profissional de RC estará sempre trabalhando com a quantidade mínima de sugestões necessárias, por exemplo, para que o paciente recorde onde mora.
Recuperação espaçada (RE)
A recuperação espaçada ajuda a aumentar a retenção de informações, sendo benéfica em associações nomes-rostos, nomeação de objetos, memória para localização de objeto, utilização de um calendário, auxílio para a pessoa se lembrar de usar o caderno de anotações para responder perguntas (por exemplo, “Quando minha filha vem me visitar?) e outras atribuições da memória prospectiva (lembrar-se de uma intenção no futuro).
Na RE os ensaios ocorrem em intervalos de expansão gradual. Por exemplo, ao mostrar uma foto de um rosto junto com um nome, o paciente deverá lembrá-lo após vários intervalos definidos (por exemplo, 5 segundos, 10 segundos, 30 segundos, 1 minuto, 2 minutos, 5 minutos). Se uma resposta correta for dada, o intervalo é expandido. Se não, a resposta correta é ensaiada, pedindo-se ao paciente que repita a resposta correta, e o intervalo é encurtado para o intervalo anterior em que a recordação bem-sucedida ocorreu.
As sessões de teste ocorrem dentro do contexto de uma situação que proporciona interação social e reduz as demandas, como uma conversa casual.
Obstáculos à reabilitação cognitiva
Assim como todas as terapias, sejam essas medicamentosas ou não, há obstáculos também na RC. Pessoas com DA podem ter dificuldade para aderir à reabilitação devido a:
Anosognosia
É muito comum que pacientes com demência por doença de Alzheimer neguem a presença ou a gravidade dos prejuízos cognitivos e funcionais, apesar de evidências palpáveis ??em contrário. A anosognosia tem sido descrita como uma falta de consciência ou percepção da doença, que pode representar um mecanismo de defesa, um prejuízo nos processos cognitivos que sustentam o insight, ou ambos.
Depressão
A depressão é uma doença relatada com grande frequência em pacientes com doença de Alzheimer em estágios iniciais. Ela pode ser um fator confundidor significativo em qualquer tipo de programa de RC porque exacerba ou pode ser a causa de déficits cognitivos, em vez da deterioração relacionada à DA. A depressão em si parece ser um fator de risco para D.A. Independentemente da etiologia, a depressão pode levar a uma espiral descendente de desesperança e prejudicar o engajamento do paciente em RC.
Pensamentos disfuncionais
Crenças derrotistas são esquemas disfuncionais que são automaticamente gerados em resposta a sentimentos de desesperança (por exemplo: “Se eu não consigo lembrar este nome, eu sou um fracasso completo e não adianta fazer o resto da reabilitação”). Esses pensamentos disfuncionais levam os pacientes a assumirem o pior resultado e contribuem para um fraco senso de autocompetência que influencia tanto o humor quanto o comportamento e, portanto, piora as habilidades cognitivas e funcionais, impedindo que as pessoas usem até suas habilidades cognitivas mais intactas.
Entender a importância da tarefa
Outro fator que contribui para o pouco engajamento na RC é a compreensão do paciente sobre o propósito por trás das tarefas específicas. Embora algumas tarefas de RC tenham alto engajamento, como lembrar nomes de pessoas conhecidas, para outras tarefas, como atividades de atenção sustentada que envolvem o rastreamento de um alvo na tela de um computador, esse propósito pode não ser evidente. Em casos como este, é imperativo que uma justificativa adequada para tarefas específicas seja fornecida aos pacientes repetidamente. Pode-se explicar que praticar o rastreamento de um alvo na tela de um computador pode melhorar a concentração, e essa concentração é o primeiro passo para lembrar detalhes importantes, como o nome de um ente querido.
Estratégias para promover a aderência
Se por um lado há obstáculos, por outro existem estratégias para promover a aderência ao tratamento em RC. São elas:
Envolvimento da família e/ou do cuidador
Para alguns pacientes com DA pode ser fundamental envolver membros da família ou o cuidador ??para ajudar a alertar ou relembrar as atividades aprendidas na RC. Eles também podem fornecer uma avaliação independente do nível atual das metas que o paciente estabeleceu e atingiu na RC.
Intervenção realista e motivacional
A intervenção em RC deve se concentrar em situações reais da vida cotidiana. A identificação de onde e por que as dificuldades específicas surgem no envolvimento ou na conclusão de uma atividade facilitará a seleção de metas realistas e realizáveis ??e planos de intervenção mais eficazes e motivadores.
Senso de autoeficáciaIdentificar algo que pode ser modificado para melhorar a situação atual e trabalhar com esse objetivo pode ajudar a melhorar o senso de autoeficácia (a crença de que podemos influenciar ou exercer controle sobre aspectos de nossa situação) e bem-estar. A realização bem-sucedida do objetivo desejado pode criar uma sensação de satisfação.
O tratamento em RC se mostra cada vez mais promissor e seu sucesso demonstra estar entrelaçado às estratégias cognitivas e aos fatores que impactam na adesão e promovem a aderência. Envolver a família e o cuidador no tratamento é fundamental, pois objetiva esclarecimentos sobre o quadro clínico e sua evolução, com apontamento de habilidades e dificuldades do paciente, além de problemas de comportamento possíveis. Ainda, há orientações para auxiliar a generalização das aquisições em RC para o ambiente doméstico e compartilhamento de medos e angústia quanto ao futuro.
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*Gislaine Gil: Doutoranda em Ciências Médicas pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP); mestre em gerontologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; pós-graduada em Avaliação Psicológica e Neuropsicológica pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP; gestão em cínica médica pela Fundação Getúlio Vargas; título de especialista em gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG); coordenadora do Programa Cérebro Ativo e do Curso de Capacitação em Estimulação Cognitiva Intergeracional do Hospital Sírio-Libanês; coordenadora do Curso de Capacitação em Estimulação Cognitiva com Simulação Prática do Vigilantes da Memória